Dentro da porta de vidro (3), de Natsume Sōseki
Percebo que logo já devem fazer uns 3 ou 4 anos desde que H me deu o Heitor, meu cão. Parece até que foi um sonho.
Na
época, ele era só um filhotinho que acabara de desmamar. Um orientando de H
enrolou ele em um pano e o trouxe até a minha casa de trem. Naquela noite, deixei que ele
dormisse em um canto da despensa nos fundos. Forrei o chão com palha para que
não ficasse muito frio e fiz o meu melhor para preparar-lhe a cama a mais
confortável possível — então fechei a porta da despensa. Mas ao cair da noite,
ele começou a chorar. Ele passou a noite inteira arranhando a porta da
despensa, tentando sair para fora. Ele deve ter se sentido solitário dormindo sozinho
naquele lugar escuro, acho que ele não dormiu um segundo sequer.
A situação se repetiu na noite
seguinte. E na próxima. Até que ele conseguiu dormir confortavelmente na cama
de palha que fiz para ele, passou-se uma semana de preocupações com o cão ao
cair da noite.
Minhas crianças o acharam
engraçado, e faziam-no constantemente de brinquedo. Mas como ele não tinha
nome, elas não tinham enfim como chamá-lo. É que para elas, se fosse para ter
um ser vivo como companhia, era necessário que houvesse um nome que pudessem
chamar para as suas brincadeiras. Então elas vieram até mim e me pressionaram
para que lhe desse um nome. Por fim, dei o grande nome de Hector ao companheiro
dos pequenos.
O nome é do herói de Troia da
Ilíada. Aquiles derrotou Heitor ao fim da guerra entre a Grécia e Troia. Foi a
vingança de Aquiles por Heitor ter assassinado um amigo seu. Heitor foi o único
que não fugiu para dentro do castelo quando Aquiles se destacou dos gregos em
fúria. Heitor deu três voltas ao redor das muralhas de Troia enquanto evadia a
ponta da lança de Aquiles. Igualmente, Aquiles deu três voltas ao redor das
muralhas de Troia perseguindo-o. Até que, finalmente, Aquiles perfurou Heitor
com sua lança, matando-o. Depois, ele amarrou o corpo de Heitor a seu carro de
guerra e arrastou-o por três voltas em torno das muralhas de Troia...
Dei este grandioso nome ao cãozinho
que fora trazido embrulhado em um pano. No início as crianças de casa, que nada sabiam sobre o assunto,
acharam que era um nome estranho. Mas logo se acostumaram. O cãozinho também,
abanava o rabo toda vez que lhe chamavam de Heitor. Eventualmente o nome deixou de soar
tão clássico para mim, tal como João ou Jorge ou qualquer outro nome Cristão
comum. Ao mesmo tempo, ele só se tornava cada vez mais estimado pelas pessoas
de casa.
Hector ficou hospitalizado por algum
tempo por causa de cinomose, uma doença que afeta muitos cães. Nessa altura, os
meus filhos iam frequentemente visitá-lo. Eu também cheguei a ir. Quando o fui
visitar, ele abanou a cauda alegremente e olhou para mim com os seus olhos saudosos.
Agachei-me e aproximei o meu rosto do dele, e dei-lhe uma palmadinha na cabeça
com a minha mão direita. Em troca, ele tentou lamber o meu rosto de todas as
maneiras possíveis. Nesse momento, à minha frente, bebeu pela primeira vez uma
pequena quantidade de leite, tal como recomendado pelo médico. O médico, que
anteriormente havia estado relutante em dar-nos qualquer esperança, disse que
poderia ser capaz que ele se recuperasse a esse ritmo. Ele foi de fato curado. E ele
voltou para casa, pulando de alegria.
Original: 「硝子戸の中」夏目漱石より
(https://www.aozora.gr.jp/cards/000148/files/760_14940.html)
Comentários
Postar um comentário