O Selo

Quando voltei ao meu apartamento, havia uma carta na caixa de correio. Um envelope pardo sem graça, com letras em tinta preta. Tinha certeza que era do Yasutoshi.

Essa era a 30ª carta que recebia dele. Fazia já um tempinho que ele não mandava nada, até cheguei a me preocupar, mas parece que ele está bem. Tinha um certo vigor nas letras do endereço.

Fui pro quarto e quebrei o selo. Ao contrário das letras no envelope, a escrita na carta em si parecia um pouco agitada.

Afastei os olhos da carta e tentei me lembrar de algo.

Desacostumado a dirigir, eu já começara a me sentir um tanto cansado. Uma estrada tortuosa nos rincões montanhosos do interior. Achei todo aquele verde bonito, mas só pela primeira hora.

Yasutoshi, no assento do passageiro, não parecia querer trocar comigo na direção.

Normalmente era ela quem dirigia.

Eu não aguentava mais, então parei o carro no acostamento. O Yasutoshi me fez uma cara de surpresa.  

— Troca comigo!

— Mas, Kousuke... Minha carteira tá suspensa. Não vou infringir a lei — disse com as palmas das mãos juntas. Yasutoshi era o mais velho de um certo templo, logo estava destinado a ser também monge no futuro. Por isso ele era de confiança, em vários sentidos.

— Ha! Fala quem correu demais e teve a carteira tomada na hora! E aí? Isso é coisa de monge? — ralhei com ele.

— Ei, eu refleti sobre os meus erros. Né, Kousuke. Não é por isso porque vou cometer outro crime. E quem é você pra ficar me instigando? Toma vergonha! Sua peste. — Dizia enquanto apontava para frente com uma expressão calma.

Seguindo seu dedo, uma placa velha dizendo que faltavam 4km para XXX. Sendo XXX o nosso objetivo dessa vez.

— Mas que patético... Chegar até aqui só pra desistir. Bom, vai ter que ser. Por sua culpa eu vou me tornar um reincidente — fingiu um suspiro. 

Só disse uma coisa... — Tá, eu dirijo. — Foi o que consegui responder.

Pisei fundo por esses quatro incrivelmente longos quilômetros até chegar na nossa cidade (ou vilarejo?) de destino.

Ali nos encontraríamos com mais um amigo, Tokiaki, que era natural da região.

O local de encontro era a Escola Primária abandonada. Fiquei sabendo na hora.

A gente ia se encontrar com um pessoal mais idoso, só ia ter a gente na faixa dos vinte anos. Fiquei achando que ia ser meio parado, pouca gente... Mas todo mundo parecia estar alegre e animado.

Tokiaki se aproximou da gente rindo.

— Viagem longa, não? O Kousuke que veio dirigindo? Não quer descansar um pouco antes de partirmos?

— Mas não era aqui?

— Hm? Não, o nosso destino fica a uma hora daqui, dentro das montanhas.

— Ah, eu tenho habilitação só no papel, dirijo não. Acho muito perigoso — disse rindo.

Estava um clima meio estranho dessa vez. Nossas viagens costumavam ser uma coisa mais divertida, todo mundo fazendo um pouco para ajudar.

Mas dessa vez o Yasutoshi estava calado e o Tokiaki, nervoso.

Eu estava tenso e exausto depois de dirigir tanto. O que será que havia mudado?

Claro, a gente não estava a passeio, nem a trabalho, muitos menos estávamos ali pra namorar.

Viemos aqui selar um espírito maligno.

Tudo começou na primavera, naquela época em que ainda fazia um pouco de frio.

Estava no quarto com o Yasutoshi, jogando algo ou assistindo alguma coisa, quando o Tokiaki apareceu em casa.

Ele tinha uma expressão incomum no rosto quando pediu para que a gente desse uma força para ele.

O que foi, brigou com a namorada? Ele respondeu rindo — não é nada disso — e voltou a fechar a cara logo em seguida. Espantados com a seriedade, pedimos que ele se apressasse a contar o que aconteceu.

— O mestre do templo lá na minha cidade está para morrer — começou a contar.

A família do Tokiaki era uma das quatro famílias que cuidavam do templo em sua cidade; ficamos sabendo que acontecia algo que eles chamavam de "Serviço" toda vez que o mestre do templo morria, era algo que acontecia há gerações.

Os chefes de cada uma das quatro famílias se juntavam para esse Serviço, mas como o seu pai estava doente e não poderia participar do Serviço, o seu filho Tokiaki teria que substituí-lo.

No entanto, como ele não era o chefe da família propriamente dito, ele teria que levar consigo três acompanhantes. Mas como o Serviço em si trazia consigo circunstâncias peculiares, Tokiaki não conseguiu encontrar ninguém que o acompanhasse em sua cidade natal; com isso, como exceção da exceção, ele conseguiu permissão para procurar a assistência de pessoas de fora, pelo que parece.

Eu falei a primeira coisa que me veio na cabeça.

— E você quer ajuda pra fazer múmia de monge? Hoje em dia?!

Rindo, Tokiaki responde: — Ora, essa... Se a gente fosse lidar com morto, estava ótimo. O problema é um demônio. O Serviço é pra selar esse demônio que vem tentar comer a carne do mestre.

Ele parecia envergonhado.

Fez-se silêncio por um tempo.

— Tá de sacanagem, né?

— Não, estou falando sério. Vocês não precisam fazer nada. Acho que só vão ter que ficar lá olhando. Só existem algumas regras, que acho melhor vocês seguirem. Não tem chance nenhuma do demônio atacar a gente. No pior dos casos, a gente pega uma febre que em 2 ou 3 dias passa.

Pra falar a verdade, eu achava que esse tipo de coisa teria mais ação. Normalmente tem uma oração de proteção, tem um ritual, e como resultado...

Não parece que vai ser assim, pelo que ele disse. De algum lugar ia sair um demônio e de algum jeito eles iam simplesmente selá-lo. Nós, como acompanhantes, só precisávamos estar presentes. Uma simples observação demoníaca.

Mas parece que existe uma diferença de pessoa pra pessoa entre quem consegue vê-lo, ou não. Por curiosidade, eu decidi ir. O Yasutoshi era meio sensitivo para esse tipo de coisa e estava um pouco ansioso, mas no fim decidiu ir também.

Nós dois concordamos em acompanhar Tokiaki, que ia voltar para sua cidade natal antes da gente e nos esperaria lá.

Dias depois, fomos nos despedir de Tokiaki na estação.

Ele mandou que fôssemos assim que entrasse em contato ­– e foi para dentro do trem.

Ah — soltei, no calor do momento —, e qual é o nome dele? — mas o meu amigo só me dirigiu um sorriso torto.

Estávamos no caminho de volta da estação. Yasutoshi ficou calado o tempo todo. Ele não era esse tipo de pessoa sombria. Ele costumava ser tão alegre, nem parecia que a sua família vinha de um templo.

— Por que será que o Tokiaki não falou o nome do demônio?

Eu, que nunca tive muito tato, tentei acertar em cheio no que estava deixando o Yasutoshi calado daquele jeito.

O Yasutoshi me encarou sério:

— Você tem cara de trouxa, mas sei que posso confiar em você quando necessário. Acho que você vai ser essencial no que ele pediu pra gente fazer.

— Tenho mesmo tanta cara de trouxa assim? Além do mais, o Tokiaki disse que não teria perigo...

Fiquei espantado com a confiança repentinamente depositada em mim, ainda mais vindo de alguém em quem sempre me apoiei.

— Ele pode mentir para as mulheres, mas pra gente ele não mente. Mas pensa bem, se não tinha perigo, por que ele não achou ninguém na cidade dele? Até nos nossos círculos a gente não fala o nome de gente desagradável. Se ele não falou o nome pra gente, é porque até considerando a nossa relação deve ser algo a ser evitado. É um sujeito que aparece quando um monge morre. Nós que somos quase nada no assunto estaremos muito pouco preparados.

Original: 封じ 
Em: kowabana.jp/stories/5

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