Os Últimos Anos de Ueda Akinari, de Okamoto Kanoko

Era primavera do 3º ano da era Bunka (1806). Ueda Akinari, um senhor idoso de 73 anos que se tornara completamente sozinho, construíra um barraco improvisado no antigo eremitério do templo Nanzen-ji de Kyoto, onde escolhera passar o resto de sua velhice.

Talvez não houvesse alguém tão absolutamente solitário como ele. Desde que perdera sua esposa Korenni 7 anos antes, que esteve consigo por 38 anos, não lhe restara nenhum parente ou relação. Tinha alguns poucos amigos e discípulos, mas apesar de socializarem-se e tratarem-se com respeito, não os deixava se aproximarem demais. Além do mais, ninguém mais vinha recentemente. Mesmo que viessem alguns de zombaria, para se deliciarem com esse velho irônico e teimoso, a maioria decidia que fazer esse tipo de brincadeira com um senil já beirando a cegueira seria trabalhoso demais, ou demasiada crueldade. O próprio Akinari já aceitara que passou da idade, percebendo-se o seu abandono.

No ano anterior à sua morte no 5º ano da era Bunka, escreveu assim em sua obra Tandai-shoushin-roku:

Não consigo mais fazer nada, apenas bebo meu sencha em caminho à morte——

Retrato de Ueda Akinari por Koga Bunrei. Wikimedia Commons.

Quando construía a sua choupana, aplicou o seu último ideal sobre as habitações humanas. Bastava que fosse uma casa de apenas oito tatames. Desses oito tatames reservou quatro para os deitares e levantares do dia a dia, e dois tatames de cada lado para deixar as ferramentas do cotidiano. Levou a escrivaninha para debaixo da janela do lado leste, acendia o fogo ao lado, e usava as prateleiras em volta para armazenar arroz, shoyu, e todos os seus comes e bebes. Em um tatame do canto oeste ele pendurou um mosquiteiro de papel com flores de ameixa, e enfiava as suas roupas despidas no futon em seu centro. Bambus ao redor para amenizar o calor do verão, lenha empilhada do lado de fora da parede para segurar o frio montanhoso do invernoso. Akinari em sua velhice pensou detalhadamente sobre como viver uma vida confortável e substancial com o mínimo de gasto. Porém era algo difícil de até mesmo ele explicar. O que ele teve de construir era nada mais que um barraco improvisado. Afora a sensação de abandono, não conseguia deixar de sentir também raiva. ——Assim que se acaba alguém que viveu por mais de 70 anos? Entretanto, ele rapidamente aquietou a sua raiva e rolou-a sobre a palma da mão, com uma sensação relutante de elegância surgindo-lhe de algum canto da mente. Ele começou a remexer os seus parcos pertences, procurando uma velha cortina de cânhamo. Na cortina estava escrito “uzurai em uma caligrafia plácida. Ele alisou as rugas da cortina e pendurou-a no beiral da choupana.

Dezessete ou dezoito anos atrás, quando tinha 55, ele vivia com a família à margem do rio Nagara. Ele gostava daquela casa, à vista singela dos pinheiros ao longo do Nagara e à sombra da floresta de um santuário ao lado. Na época já havia se mudado dezenas de vezes entre Kyôto e Settsu com a família nas costas, então não tinha muita confiança na estabilidade de sua moradia. Era querendo sentir-se estável em sua falta de confiança que pendurava a cortina no beiral. “Uzurai” era o nome do seu eremitério, querendo transmitir o sentido de que as perdizes não possuem residência fixa.

Quando ia para fora e via sua pequena casa própria com a cortina dos ditos dizeres dependurada, dava-lhe a sensação de que possuía um lugar onde morasse no mundo; nessas horas, apesar de já estar entrando em uma idade avançada, ele se alegrava como uma criança. No entanto essa felicidade não durou muito tempo, e a partir do sexto ano quando enrolou a cortina e se mudou para Tóquio, voltou à vida de mudanças constantes.

A cortina estava bem imunda. Akinari pendurou a cortina, como da primeira vez em sua casa do Nagara, e foi do lado de fora para vê-la. A choupana era nova, logo a imundície da cortina se destacava. O fantasma de sua obsessão residencial quis desdenhá-lo, transparente em seu rosto. Mas não importava quanto o destino o fizesse se mudar, ele não duraria mais por muito tempo. Desta vez, essa casa é a única e última. Isso lhe deu um prazer doloroso — há! — disse à cortina. Então ficou com vontade de contar esse sentimento a Korenni — Korenni! Só dessa vez. Saia do túmulo e venha conversar comigo.

Ele disse através da parede em direção ao quarto ao lado, que era do tamanho de uma pequena caixa, onde planejava que sua esposa morasse. O resto se perdeu no riso.


Akinari colocou arroz cozido em uma tigela de um saco de papel e jogou água quente por cima. Ele pegou um exemplar de Ugetsu Monogatari (Contos da Chuva e da Lua) publicado no 5º ano de An’ei (1776), e o usou para cobrir a tigela. Esta curiosamente graciosa história foi escrita por ele no 5º ano do Meiwa (1768), quando tinha trinta e cinco anos de idade. Oito anos se passaram entre sua redação e sua publicação.

Além de muita elaboração atrás de elaboração, esforçou-se muito para conseguir que a obra fosse publicada. Em retrospectiva, em uma vida em que prevaleceu o seu lado de homem de letras nacional, foram poucas as vezes em que demonstrou a sua habilidade como contador de histórias, algo que consideram como dele de nascença. Das parcas obras que escreveu, este livreto foi sua obra-prima e, embora suas outras obras houvessem se dispersado, ele manteve um carinho especial por ela, mantendo-a perto de seu coração até os seus últimos anos. Não obstante, havia pouco por que ele se apegasse. Ao decorrer de uma vida em que foi zombado do destino, como se houvesse sido jogado de um lado para o outro, o que acontecera do que era de seu gosto e natureza?

Mesmo nesse estado, vivia desesperado por viver. Mesmo que seu corpo começasse a morrer pelas pontas dos pés e das mãos, mesmo que sobrasse apenas uma costela, mostrar-lhes-ia seu zelo pela vida — Quando seus pensamentos chegavam a isto, conseguia sentir uma misteriosa calma.

O canto de um pássaro anunciava a morna alvorada que se aproximava, de alguma distância desconhecida. Nessa manhã túrbida, começou a sentir um interesse senil em beber chá. Ele colocou água nova na chaleira e reanimou o fogo. Enquanto a água fervia, pegou seu bule de nanban de estimação e ficou acariciando-o em cima dos joelhos com ambas as deformadas mãos, como se segurasse uma flor. Dentre os seus cinco sentidos decrépitos, o tato era o que tinha de mais certo.

Começaram a meditar no prédio central do templo Nanzen-ji. Enquanto ouvia aquelas vozes, começou a vir-lhe à cabeça o nome de pessoas que morreram. Organizados em ordem cronológica, 5 anos atrás, no 1º ano do Kyôwa (1801) morrera seu amigo Ozawa Roan aos 79 anos de idade. Quando pensou no seu rival de trabalho Motoori Norinaga, que morrera aos 73 anos, chegou a soltar um sorrisinho — aquele frangote!

Sentiu um anseio ao se lembrar de Tada Nanpo, 12 anos mais jovem com 60 anos de idade, que ainda se mantinha firme e forte. Sabia que não ia viver mais tempo do que ele. Esse pequeno oficial inteligente do shogunato, arbitrário e se escondido atrás da rapsódia do mundo, às vezes olhava Akinari com um olhar sério e atencioso. Portanto, ele não sentiu pena dele, mesmo que tenha sido derrotado.

A água foi despejada em um bule de chá, e era perfumado com a fragrância pálida do famoso chá "Ichinomori". Ele agarrou o bule. Mergulhou seu nariz pontiagudo e curvo na boca do bule. Subiu a sua mente o alvorecer da primavera na aldeia de Shigaraki, onde fora cultivado o chá.

No ano seguinte, no quarto ano do Bunka (1807), aos 74 anos de idade, Akinari jogou fora cinco pacotes de manuscritos em um velho poço. No ano seguinte, no quinto ano da era Bunka, ele permitiu que compilassem e publicassem uma coleção de suas cartas, “Fumi-hougu”. E ele mesmo completou uma coleção de suas confissões mais explícitas, a coleção de ensaios “Tandai-shoushin-roku”.

 

Em junho do ano seguinte, Bunka 6, ele morreu na casa de seu discípulo Hanekura Nobumi. Ele não conseguiu viver até o fim da vida em seu eremitério “Uzurai” em Nanzenji, como havia decido fazer. Antes de ser levado para a casa de Nobumi, ele permaneceu temporariamente no Templo Saifuku-ji, onde já havia construído um túmulo para si.

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